Páginas

NOSSAS VISITAS

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

França perde um grande ciclista, Laurent Fignon





Ciclismo Laurent Fignon, a vida dele em oito segundos03.09.2010 - 16:06 Ana Marques GonçalvesDR
Uma fotografia tirada no dia 17 de Julho de 1984


Ganhou duas Voltas a França, mas foi a derrota na edição de 1989 que marcou a carreira deste hippie que chegou ao ciclismo aos 22 anos. Poderá uma vida tornar-se eterna em segundos?

23 de Julho de 1989: Laurent Fignon acordou com a euforia de ter o terceiro Tour ganho. Faltava-lhe uma única batalha (o contra-relógio final) para garantir que o yankee Greg Lemond não estragava os planos da festa em Paris, a sua cidade. Fignon vestiu o equipamento, saiu para a estrada para experimentar as últimas inovações tecnológicas que o norte-americano tinha trazido dos Estados Unidos e irritou-se com o incómodo que a revolução high-tech lhe provocava na bicicleta.

O francês era um ciclista tradicional, daqueles românticos que acreditavam que o ciclismo era um desporto do homem pelo homem, em que a bicicleta tinha pouco a dizer. Por isso, ignorou o novo guiador - mais aerodinâmico, capaz de milagres contra o vento -, ignorou a importância do capacete, o perigo iminente de perder a amarela (50 segundos para um especialista em contra-relógio era uma vantagem "confortável"), e, com excessiva confiança, partiu para o contra-relógio julgando-se imbatível.

O que aconteceu depois faz parte da história do ciclismo e do desporto. "O ponto de mudança da minha história situa-se exactamente no último dia do Tour de 1989. Dia de tristeza demente, dia de derrota monstruosa, inaceitável. O único dia da minha existência em que apenas alguns segundos se transformaram na eternidade", escreveu o francês no livro Nous étions jeunes et insouciants (Éramos jovens e despreocupados, ainda sem edição portuguesa), publicado em Junho do ano passado.

Poderá uma vida tornar-se eterna em segundos? Sim, se esses segundos forem oito e se essa vida for a de Laurent Fignon.

O último grande ciclista originário de Paris (vamos mais longe e os franceses que nos perdoem: o último grande ciclista francês nos últimos 20 anos) não ficará conhecido pelos seus feitos extraordinários no ciclismo - vencedor da Volta a França, em 1983 e 1984 (nove vitórias de etapa), do Giro de Itália, em 1989, e das míticas clássicas Milan-San Remo (1988 e 1989) e Flèche Wallonne (1986).

Nem pela sua figura extremamente peculiar - óculos redondos muito anos 80, cabelos louros meio compridos e esticados que lhe valeram, nada mais, nada menos, do que a alcunha de "Professor"-, mais associável aos intelectuais da Sorbonne do que ao pelotão internacional, pródigo em testosterona, pele excessivamente queimada e cortes clássicos e bem comportados. Muito menos será relembrado pelo estilo hippie inconfundível: "Tenho a sensação de ter vivido num curto intervalo hippie do ciclismo. Acredito mesmo que fui um dos seus principais instigadores", disse numa entrevista agora republicada pela AFP.

E nem mesmo a sua personalidade, que tinha tanto de excêntrica como de frontal, de mal-humorada, esquiva e dura como de empática (na sua posterior tarefa como comentador televisivo), poderá suplantar o óbvio. Laurent Fignon, que morreu na terça-feira num hospital de Paris, aos 50 anos e depois de 18 meses de luta contra o cancro, será sempre aqueles oito segundos, aqueles segundos que estão inscritos na história do ciclismo com o título Diferença mais curta de sempre entre vencedor e vencido na Volta a França. E o vencido era ele - o vencedor antecipado.

Um futuro que nunca foi

Naquele dia, o mundo de Fignon caiu. "Nunca fazemos o luto de um acontecimento tão violento; na melhor das hipóteses, conseguimos domesticar as consequências psicológicas."

O peso da derrota na sua vida foi tal que a sua autobiografia - estava prestes a ser impressa quando um telefonema o informou da doença que viria a ser fatal - começa com a referência a esse momento e a epígrafe do capítulo é um simples "oito segundos".

Futebolista tornado ciclista depois de ter vencido a primeira prova em que correu, captou a atenção de Cyrille Guimard, que o recrutou para a importante Renault-Elf Gitane e que com ele formou uma ambiciosa dupla até ao estrondoso divórcio motivado por esses oito segundos. O "Professor" apareceu do nada para vencer a maior prova de ciclismo mundial. Tinha 22 anos, um futuro pela frente e estava a fazer a sua estreia na competição em que todos os ciclistas querem correr. E ganhou com o estatuto de estreante - como Anquetil 26 anos antes, como Hinault seis anos antes -, tornando-se o mais novo vencedor de sempre do Tour, título que até hoje mantém.

O Tour de 1983 não foi mera sorte de principiante. Um ano depois, com o pelotão na sua máxima força, o francês regressou a casa para mais uma estrondosa vitória, com direito a camisola amarela em Paris, um mês depois de lhe terem "roubado" o Giro em favor de um ciclista da casa, Francesco Moser. "Não só escamotearam as montanhas, como também fizeram batota para que eu não ganhasse - no contra-relógio até um helicóptero puseram à minha frente para me perturbar - e isso não aceito, nem nunca vou aceitar", disse numa entrevista agora citada pelo El País.

Com 24 anos e duas Voltas a França no palmarés, desenhava-se à sua frente um futuro ao nível dos grandes campeões clássicos - Jacques Anquetil, Bernard Hinault ou Eddy Merckx. Um futuro que nunca chegou a acontecer, porque a aura de campeão mudou e os azares sucederam-se: uma lesão afastou-o do Tour de 1985 (estava a recuperar de uma operação ao tornozelo), uma doença obrigou-o a desistir da prova francesa no ano seguinte, uma queda impediu-o de tentar vencer mais uma vez em 88.

E em 87, seria uma suspensão pela utilização de anfetaminas a afastá-lo da prova. O recurso ao doping, um pecado confessado nas páginas do seu livro, levantou dúvidas quanto à origem do seu cancro: "Os médicos não encontram relação entre a dopagem e o cancro. O que eu tomava parecia-lhes ridículo. Se assim fosse, toda a minha geração teria cancro." O herói francês não era do tempo da dopagem de alto risco - pelo seu corpo passaram anfetaminas e corticóides, nada de hormonas de crescimento, EPO e afins, que transformaram o ciclismo num desporto de resistência, mais do que de agressividade.

Fignon desapareceu como apareceu: precocemente. Na vida, com um curto comunicado da sua mulher anunciando a sua morte, no ciclismo, com uma demorada despedida. Dez anos depois de aparecer como um furacão no Tour, escolheu a subida para La Bonette-Restefonds, a mais alta daquela edição da prova francesa, para saborear a despedida. "Subi como um cicloturista", escreveu. "Apreciei a paisagem, desfrutei da subida, saboreei o ciclismo. Tudo era harmonia à minha volta. O ciclismo podia continuar sem mim. A vida continuaria

Nenhum comentário: